O ator Paquistanês



Estávamos nós a ensaiar hoje, ao ar livre, no Campo dos Mártires da Pátria, e já habituados aos acidentes de interrupção por parte de alguns transeuntes, quando um homem pequenino, de cabelo farto e com uma cara muito carinhosa, se aproximou e ficou a ouvir a Anabela Pires. Ele carregava uma cerveja estrangeira e percebia-se que já vinha tocado. Eis se não quando, interrompeu a Anabela e disse, em castelhano, que as palavras dela eram lindas. A atriz agradeceu, apontou para mim e disse que eu tinha escrito. Ele perguntou muito contente Eres tu el escritor? Si, soy yo quién lo ha escrito. Respondi.

Escrebeme algo, unas palavras, para qué you diga. Soy actor. Tinha o tamanho do Fernando Arrabal, eu estava a olhar para ele, encantado. Perguntou se se podia sentar e conforme ia ouvindo a atriz ia reagindo e dizendo Qué bonitas son las tuyas palabras.

No fim ficou a conversar um pouco connosco e contou que era ator  no Paquistão mas que cá não conhecia amigos e não conhece ninguém. Que fala muito com os burros mas que gostava de ter amigos como nós. Sensíveis. Que queria trabalhar e não queria dinheiro. Para eu lhe escrever umas palavras. Pediu à atriz para ela lhe dizer umas palavras para ele repetir. Ele repetiu uma frase do poema que ela vai repetindo como mote, na curta.

Os olhos dele brilhavam, e não era do álcool, era de alegria e inspiração. Depois falou num guru que tinha no Paquistão, que não tinha nenhum Deus, o guru. Era ateu. Contou que o sapo estava no meio do lago e que ele tinha medo e que o guru lhe tinha dito que Deus está na natureza. E o modo como ele imitou o sapo fui maravilhoso. Por fim ele disse que por vezes estava cansado da sua vida. Que já teria 42 anos quando agosto chegasse.

Pediu o meu contacto e eu dei-lho mas também lhe dei o de uma agência de figurantes para ele começar. Tinha deixado o telemóvel no trabalho. Ele. A atriz assentou num papel. Eu disse-lhe: tu és uma pessoa especial, por favor cuida de ti. 

Parecia eu que estava a falar para mim quando ele respondeu: tu eres más. Fiquei arrepiado. Dei-lhe um abraço e respondi que isso não existe. Cada um é especial à sua maneira.

Si te llamo me escribis unas palabras?

Não resisti e disse: Está prometido.

Fiquei o resto do ensaio a pensar nele enquanto trabalhava A Carta da Corcunda para o Serralheiro e a Mémórias de um psicopata.

Depois um casal masculino subia umas escadas com um cão solto, um cão ao colo e a tentarem que um terceiro andasse. O que estava ao colo e o que não queria andar tinham saído à rua pela primeira vez. Tinham sido resgatados e estavam com medo de serem abandonados de novo.

Digamos que foi um dia para a ternura e a sensibilidade.

Agora tenho de olhar também à minha volta e ver se não perco!


                                                            


O homem sem boca!

 Era uma vez um homem sem boca. Em vez de boca, só havia pele. Ele tinha olhos, mas estavam voltados para dentro. Portanto, ele não podia ver. Só existia o silêncio interior. Ele ouviria se tivesse ouvidos e, como não havia narinas no nariz, ele apenas podia respirar pela pele que era tão fina que era transparente. Ele era invisível porque, por baixo da pele, não havia nada. Apenas uma leve brisa soprava.

Algumas pessoas são assim!


BS - 2013 


 

Sobre a Morte, os Amigos e a Família

 Eros e Thanatos estão de mãos dadas. Já "rezavam" os gregos clássicos. E é muito atual esta ideia. Os amigos são a família escolhida. Mas só para alguns. Nem sempre nós somos a família escolhid,a pelos amigos que participam da família que nós escolhemos. Demasiado retórico? Tanto como em vez de ir para longe tipo o Zimbabué, ir ali para Estarreja. Ou mesmo para Pondicherry. Tal como a família, também a família "amigos" nos pode matar se nos tornamos dependentes dessa vibração. E, desenganem-se, nunca deixamos de vibrar pela família-família, sobretudo nas situações de perigo em que possa estar. Pelo menos comigo sempre foi assim. Acalmou um pouco. É verdade. Mas foi sempre uma espécie de continuidade com o cordão umbilical perdido por corte que talvez me tenha conduzido a vibrar tanto em defesa das mulheres da família.

Ora, como sempre, tudo muda. Até a surda muda. E tudo passa. Até a uva passa. Vai daí fiquei sempre hooked on friends. E nunca precisei de sentir retorno. Sentia, e era tudo.

Mas estes impulsos e pulsões de Eros (vida) são recorrentemente intercalados com pulsões e impulsos de Thanatos (morte). Muitas vezes em amigos, muitas vezes em família, muitas vezes em nós e nas ideias.

Então, celebrar a vida, também pode ser celebrar a morte uma vez que, a primeira, é só o tempo que dura entre a vinda e a ida. 

Daí a importância dos amigos de Alex, de Lawrence Kasdan (1983).

E daí a grande fraude do cinema. O cinema alimenta realidades que são tudo menos realidades. Pelo menos as minhas. Tal como há vários teatros, também há várias realidades. As do cinema só existiram para mim até à idade dos 50 anos. Depois disso passei a perceber que as minhas realidades só existem para mim. Tal como o cinema. Um filme bom é aquele que leva cada um de nós a uma "viagem" pessoal. Ora, isso transforma o cinema numa das mais belas fraudes de realidades. E, gosto tanto dessa fraude, que aderi a ela com todo o gosto. As imagens em movimento têm uma magia que falta ao mundo, tal como a música.

Deus devia ser DJ para além de realizador e/ou encenador.

Se fosse assim, talvez não tivesses partido por vontade própria. Ou será que sim? Hã? Luís Aleluia.

E cá estamos... como os amigos de Alex... com a tua partida prematura.

Bem hajas e até breve,


Sobre Eunucos, Castrati e invasões ultrajantes

 Os eunucos remontam a três mil anos antes da nossa época, mais coisa menos coisa. Era uma medida para os guardas dos haréns não fornicarem com as esposas e odaliscas dos senhores. Arrancavam-se-lhes os testículos e os pénis. Por vezes, apenas os testículos. Já os castrati remontam aos primórdios do cristianismo. Era uma forma de os pais impedirem os filhos de procriar, poupando dinheiro desse modo. Muitas vezes esses filhos eram entregue a padres e a professores de canto para que tomassem conta deles. Uma vida na igreja era almejada por aqueles que tinham poucas posses. Foi desse modo que ficaram ligados ao canto operático. Entretanto prevenia doenças, dizem, e reduzia as hormonas. Ora, com esta beleza e estética de visão do mundo, criou-se o bom associado ao belo modo de castrar os outros animais. Evita doenças, defendem. E também evita o abandono, sublinham. Vai daí, em Portugal, não se tem opção porque não se esteriliza. Castra-se e mais nada. Pergunto-me se não seria bom, tomando como exemplo  o que fizeram ao meu cão, castrar todos os homens. Evitavam-se as doenças da próstata e o abandono por velhice. Ou não? Pensando bem...










Revisitar

Revisitar conferências das quais fui curador e moderador, é um exercício maravilhoso porque acorda conteúdos cuja importância não era tão clarana altura. Também encontrei uma colega de curso - ESTC Bairro Alto 1986/1989 - Maria João Reis, e recordar é revitalizar. 

Gosto de saber que as situações marcaram.

Olhar para trás não é ficar preso no passado. Pelo menos não tem de o ser. Pode ser para nos alertar para um melhor presente. E o presente é uma dádiva porque está aqui e agora, certo?

Há tempos encontrei alguém de outra época mas não me lembro de quem encontrei nem o que significou para mim. Lembro-me que significou muito mas não sei o quê. Ora, a Adília Lopes vive dos seus escritos e lembra-se das situações mas eu não. O que nos diferencia?

Talvez a demência não seja uma incapacidade mas a capacidade de nos retirarmos com laivos de incapacidade para não ficarem zangados connosco.

É algo a pensar de modo demente, paciente e contente!




O que muda, o que se transforma e o que se cumpre!

 A maior mudança que acontece e é incontornável é a nossa morte. E dessa, temos a sensação de ter medo. Mas do que temos mais medo é da vida...