Fumar pode matar!

 

FUMAR PODE MATAR 




 

 

            Era uma vez um cachorrinho muito peludo, todo preto e com olhos azuis. Tinha nascido há um mês e sentia-se inadaptado no meio dos irmãos e da mãe.

            Do outro lado dos ares, do rio e do mar, uma criança num corpo de homem cumpria os seus deveres e responsabilidades para com a mãe que estava a deixar o planeta terra para rumar a outras paragens.

            A criança no corpo de homem não percebia porquê que a mãe queria partir e deixá-lo inadaptado no meio do resto das pessoas.

            Do outro lado, o cachorrinho mamava pouco. Apenas o essencial para se manter vivo e à espera que alguma coisa boa acontecesse. Se havia alguma coisa que ele sabia que não queria era ficar sozinho. Era assim que se sentia sempre que os irmãos lhe roubavam o lugar na teta predileta. Ele desistia logo porque não lhe apetecia lutar com os irmãos e afastava-se porque a mãe manifestava um desapego para com ele que o fazia sentir-se desistente.

            A criança no corpo de homem comia cada vez menos e as suas refeições eram à base dos seus receios e por isso sentia fome com aquilo que o alimentava. Isto, claro, do tal outro lado. O oposto ao do cachorrinho.

            Chegou então o dia em que a mãe da criança no corpo de homem partiu para sempre. Rumando sabe-se lá para onde. A criança no corpo de homem, mais uma vez, mesmo sem perceber porquê que a mãe o deixava assim, cumpriu os seus deveres e as suas responsabilidades no último adeus à mãe.

            No meio do último adeus, uma fada disse à criança no corpo de homem que do outro lado, o oposto àquele, havia três cachorrinhos que procuravam um amigo. A criança no corpo de homem, como se sentia sozinha e a precisar de um amigo, respondeu à fada que iria com ela por esses ares para cativar um dos cachorrinhos. Isto 19 dias depois de o cachorrinho ter vindo ao mundo.

            Combinaram tudo e a fada, com as suas teias de fio mágico, foi buscar a criança no corpo de homem no dia acertado e levou-a por ares e rio e mar até que pousaram numa terra macia onde um mago com um sorriso aberto os recebeu conduzindo-os de imediato ao sítio onde estavam os cachorrinhos que precisavam de um amigo. Isto 30 dias depois de o cachorrinho ter nascido

            A cinco metros do sítio onde os três cachorrinhos mamavam, um deles, o tal de olhos azuis e muito pêlo todo preto, soltou de imediato a teta da mãe, sem que nenhum dos irmãos lha tirasse como era habitual, e dirigiu-se à criança no corpo de homem cheirando-lhe os pés e olhando para ela nos olhos.

            O mago e a fada disseram em coro, “ele quer que sejas tu o seu amigo”.

            A criança no corpo de homem selou o acordo de imediato e a fada trouxe os dois de regresso depois de terem partilhado um bom lanche com o mago. Era a primeira vez ao fim de muito tempo em que a criança no corpo de homem comia sabendo-lhe tudo muito bem. E sabendo tudo a comida. Não a receios.

            A fada, percebeu que eles precisavam de ficar sozinhos para se conhecerem e foi rápida nas despedidas seguindo para tratar de outros assuntos mágicos.

            Durante as primeiras semanas, a descoberta entre ambos foi um misto de êxtase e ferida.

            Um dia, a criança no corpo de homem, sem saber porquê, talvez por ainda não ter percebido as razões da partida da mãe, o que a deixava impaciente, bateu forte no cachorrinho quando ele não obedeceu. O cachorrinho ganiu com tristeza. Como se pedisse: não me faças isto.

            A criança no corpo de homem cresceu de repente com aquele pedido. Assustou-se consigo e jurou amar sempre e nunca abandonar o cahorrinho.

            Durante os primeiros anos, a criança que já era homem sentia remorsos de um dia ter feito aquilo mas o cachorrinho, que crescera depressa, sentindo-o triste enquanto homem, olhava-o nos olhos e lambia-lhe as mãos dizendo que o tinha posto à prova para ver se podia contar mesmo com ele para sempre e que já lhe tinha perdoado a agressão. A criança no corpo de homem que já era mais homem no corpo da criança no corpo de homem suspirava e acalmava mas no fundo continuava a sentir um profundo remorso.

            Ao fim de seis anos, a criança no corpo de homem já homem no corpo da criança no corpo de homem, que não podia passar meio-dia sem o cachorrinho que agora era um belo e desenvolto cão, percebeu finalmente porquê que a mãe tinha partido naquela altura. Se ela tivesse ficado, a fada não teria dito nada à – então – criança no corpo de homem e nem ele – agora homem no corpo de homem mas com a alegria de uma criança – nem o cachorrinho tinham encontrado o seu melhor amigo, e ainda hoje se sentiriam inadaptados e, ainda pior, assombrados por isso.

            O homem no corpo de homem tinha dado ao cachorro o nom e de Sombra, quando ainda era uma criança no corpo de homem e, o cachorro, um belo cachorro. Porque o cachorro seguia-o para todo o lado.

            Mas um dia, alguma coisa voltou a estar errada. O homem acordou. Virou-se languidamente na cama agarrando a almofada como se esta o pudesse salvar da realidade. O tecido fresco dava-lhe conforto. Como se fosse uma ponte para o útero materno, do qual não se lembrava mas que, sabia-o agora, tinha sido o último lugar seguro onde tinha estado.

            Depois ergueu a cabeça. Olhou em volta e reparou no cinzeiro com cigarrilhas que fumava há quatro anos. Ao lado delas, as tampas de algumas cervejas ainda estavam por deitar fora. Alguma coisa tinha perdido o encanto e a vida já não lhe parecia passível de ser descrita como um conto de fadas.

            Decidiu levantar-se mas foi derrubado pelo seu companheiro Sombra. O cão que lhe alimentava a alma e a pele com o entusiasmo com que sempre o acolhia.

            O homem olhou para o prato do Sombra e achou melhor enchê-lo com patê de pato. O favorito de Sombra.

            Depois arrastou-se para a casa de banho e lavou a cara e os dentes. Vestiu-se. Não lhe apeteceu tomar banho.

            Arrumou as poucas coisas que eram suas e saíram os dois da casa. Uma casa que os tinha acolhido nos últimos cinco dias. Uma casa acolhedora e mais viva do que ele, o homem, se sentia.

            Sombra correu satisfeito por o sol o brindar com luz e entre arbustos e marcações de território lá chegaram ao carro.

            Puseram-se a caminho.

            A única paragem foi para um rápido café e algum combustível.

            Já afastados da cidade, no meio da estrada, o homem acendeu uma cigarrilha.

Enquanto trauteava uma canção antiga, bateu sem querer na cigarrilha no canto da boca que caiu para cima da roupa e sobressaltou o homem.

Entre os gestos rápidos para apanhar a cigarrilha que rolava para outro lado do assento, o homem perdeu o controlo do volante, embatendo na berma da estrada.

Ao capotar, o carro deu duas voltas inteiras e, quando ficou de novo na posição normal, o vidro da frente estava partido e o homem curvado sobre ele, com as órbitas espetadas nos bicos dos estilhaços.

Não respirava. Não se mexia. Uma cor vermelha corria pelo pescoço como se de um riacho de vida se tratasse.

Os vidros das janelas iam abertos de modo que Sombra saiu do carro pela janela da direita. Estava ileso. Sacudiu-se.

Ficou sentado na estrada, à espera que o homem se erguesse. Nada. Nem um movimento.

Uma brisa mais forte fez o maço quase vazio voar pela janela. Caiu ao lado de Sombra com o dizer: Fumar Pode Matar.


Bruno Schiappa - 2010

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