FUMAR PODE MATAR
Era uma vez um cachorrinho muito
peludo, todo preto e com olhos azuis. Tinha nascido há um mês e sentia-se
inadaptado no meio dos irmãos e da mãe.
Do outro lado dos ares, do rio e do
mar, uma criança num corpo de homem cumpria os seus deveres e responsabilidades
para com a mãe que estava a deixar o planeta terra para rumar a outras
paragens.
A criança no corpo de homem não
percebia porquê que a mãe queria partir e deixá-lo inadaptado no meio do resto
das pessoas.
Do outro lado, o cachorrinho mamava
pouco. Apenas o essencial para se manter vivo e à espera que alguma coisa boa
acontecesse. Se havia alguma coisa que ele sabia que não queria era ficar
sozinho. Era assim que se sentia sempre que os irmãos lhe roubavam o lugar na
teta predileta. Ele desistia logo porque não lhe apetecia lutar com os irmãos e
afastava-se porque a mãe manifestava um desapego para com ele que o fazia
sentir-se desistente.
A criança no corpo de homem comia
cada vez menos e as suas refeições eram à base dos seus receios e por isso
sentia fome com aquilo que o alimentava. Isto, claro, do tal outro lado. O
oposto ao do cachorrinho.
Chegou então o dia em que a mãe da
criança no corpo de homem partiu para sempre. Rumando sabe-se lá para onde. A
criança no corpo de homem, mais uma vez, mesmo sem perceber porquê que a mãe o
deixava assim, cumpriu os seus deveres e as suas responsabilidades no último
adeus à mãe.
No meio do último adeus, uma fada
disse à criança no corpo de homem que do outro lado, o oposto àquele, havia
três cachorrinhos que procuravam um amigo. A criança no corpo de homem, como se
sentia sozinha e a precisar de um amigo, respondeu à fada que iria com ela por
esses ares para cativar um dos cachorrinhos. Isto 19 dias depois de o
cachorrinho ter vindo ao mundo.
Combinaram tudo e a fada, com as
suas teias de fio mágico, foi buscar a criança no corpo de homem no dia
acertado e levou-a por ares e rio e mar até que pousaram numa terra macia onde
um mago com um sorriso aberto os recebeu conduzindo-os de imediato ao sítio
onde estavam os cachorrinhos que precisavam de um amigo. Isto 30 dias depois de
o cachorrinho ter nascido
A cinco metros do sítio onde os três
cachorrinhos mamavam, um deles, o tal de olhos azuis e muito pêlo todo preto,
soltou de imediato a teta da mãe, sem que nenhum dos irmãos lha tirasse como
era habitual, e dirigiu-se à criança no corpo de homem cheirando-lhe os pés e
olhando para ela nos olhos.
O mago e a fada disseram em coro,
“ele quer que sejas tu o seu amigo”.
A criança no corpo de homem selou o
acordo de imediato e a fada trouxe os dois de regresso depois de terem
partilhado um bom lanche com o mago. Era a primeira vez ao fim de muito tempo
em que a criança no corpo de homem comia sabendo-lhe tudo muito bem. E sabendo
tudo a comida. Não a receios.
A fada, percebeu que eles precisavam
de ficar sozinhos para se conhecerem e foi rápida nas despedidas seguindo para
tratar de outros assuntos mágicos.
Durante as primeiras semanas, a descoberta
entre ambos foi um misto de êxtase e ferida.
Um dia, a criança no corpo de homem,
sem saber porquê, talvez por ainda não ter percebido as razões da partida da
mãe, o que a deixava impaciente, bateu forte no cachorrinho quando ele não
obedeceu. O cachorrinho ganiu com tristeza. Como se pedisse: não me faças isto.
A criança no corpo de homem cresceu
de repente com aquele pedido. Assustou-se consigo e jurou amar sempre e nunca
abandonar o cahorrinho.
Durante os primeiros anos, a criança
que já era homem sentia remorsos de um dia ter feito aquilo mas o cachorrinho,
que crescera depressa, sentindo-o triste enquanto homem, olhava-o nos olhos e
lambia-lhe as mãos dizendo que o tinha posto à prova para ver se podia contar
mesmo com ele para sempre e que já lhe tinha perdoado a agressão. A criança no
corpo de homem que já era mais homem no corpo da criança no corpo de homem
suspirava e acalmava mas no fundo continuava a sentir um profundo remorso.
Ao fim de seis anos, a criança no
corpo de homem já homem no corpo da criança no corpo de homem, que não podia
passar meio-dia sem o cachorrinho que agora era um belo e desenvolto cão,
percebeu finalmente porquê que a mãe tinha partido naquela altura. Se ela
tivesse ficado, a fada não teria dito nada à – então – criança no corpo de
homem e nem ele – agora homem no corpo de homem mas com a alegria de uma
criança – nem o cachorrinho tinham encontrado o seu melhor amigo, e ainda hoje
se sentiriam inadaptados e, ainda pior, assombrados por isso.
O homem no corpo de homem tinha dado
ao cachorro o nom e de Sombra, quando ainda era uma criança no corpo de homem
e, o cachorro, um belo cachorro. Porque o cachorro seguia-o para todo o lado.
Mas um dia, alguma coisa voltou a
estar errada. O homem acordou. Virou-se languidamente na cama agarrando a
almofada como se esta o pudesse salvar da realidade. O tecido fresco dava-lhe
conforto. Como se fosse uma ponte para o útero materno, do qual não se lembrava
mas que, sabia-o agora, tinha sido o último lugar seguro onde tinha estado.
Depois ergueu a cabeça. Olhou em
volta e reparou no cinzeiro com cigarrilhas que fumava há quatro anos. Ao lado
delas, as tampas de algumas cervejas ainda estavam por deitar fora. Alguma
coisa tinha perdido o encanto e a vida já não lhe parecia passível de ser descrita
como um conto de fadas.
Decidiu levantar-se mas foi
derrubado pelo seu companheiro Sombra. O cão que lhe alimentava a alma e a pele
com o entusiasmo com que sempre o acolhia.
O homem olhou para o prato do Sombra
e achou melhor enchê-lo com patê de pato. O favorito de Sombra.
Depois arrastou-se para a casa de
banho e lavou a cara e os dentes. Vestiu-se. Não lhe apeteceu tomar banho.
Arrumou as poucas coisas que eram
suas e saíram os dois da casa. Uma casa que os tinha acolhido nos últimos
cinco dias. Uma casa acolhedora e mais viva do que ele, o homem, se sentia.
Sombra correu satisfeito por o sol o
brindar com luz e entre arbustos e marcações de território lá chegaram ao
carro.
Puseram-se a caminho.
A única paragem foi para um rápido
café e algum combustível.
Já afastados da cidade, no meio da
estrada, o homem acendeu uma cigarrilha.
Enquanto trauteava uma canção antiga, bateu sem querer na cigarrilha no
canto da boca que caiu para cima da roupa e sobressaltou o homem.
Entre os gestos rápidos para apanhar a cigarrilha que rolava para outro
lado do assento, o homem perdeu o controlo do volante, embatendo na berma da
estrada.
Ao capotar, o carro deu duas voltas inteiras e, quando ficou de novo na
posição normal, o vidro da frente estava partido e o homem curvado sobre ele,
com as órbitas espetadas nos bicos dos estilhaços.
Não respirava. Não se mexia. Uma cor vermelha corria pelo pescoço como se
de um riacho de vida se tratasse.
Os vidros das janelas iam abertos de modo que Sombra saiu do carro pela
janela da direita. Estava ileso. Sacudiu-se.
Ficou sentado na estrada, à espera que o homem se erguesse. Nada. Nem um
movimento.
Uma brisa mais forte fez o maço quase vazio voar pela janela. Caiu ao
lado de Sombra com o dizer: Fumar Pode Matar.
Bruno Schiappa - 2010
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