O Autoclismo - escrito em 1995


O AUTOCLISMO

 

            Pedro Couto tinha nascido, tanto quanto se lembrava do que lhe tinham contado, numa madrugada de outono. Rodeado por aquilo que, segundo alguns, estava na origem do raio de vida que ele construía. Muito antes de se lembrar de sair de casa da mãe, já tinha saído. Tinha saído sempre. Sempre que faltava o pão, que faltava a luz ou que não davam novela.

            O mais estranho é que, de vez em quando, tinha uma necessidade incrível de regressar àquela casa pequena e cheio de berros e exaltação.

Tinha um grande sentido do dever, que questionava constantemente, e isso obrigava-o a gostar de regressar á casa materna.

Quando a porta se abria já estava irritado. O que o chateava bastante pois estava em profunda contradição com a imensa alegria que tinha sentido na rua, pela ideia. Pela ideia de ver as caras familiares cheias de sorrisos, por sua vez, de o reverem.

Pedro Couto não desistia. “Há de ser normal lembrar-me do antes de e não gostar do durante e sentir-me muito aliviado com o depois de”, pensava. E lá continuava com o seu dia-a-dia que considerava normal mesmo quando não era bem assim. Tentava. Queria. Mesmo quando acordava e ia com o cigarro apagado para a cozinha, aquecia o café (no qual se esquecia de pôr o açúcar) e ia para a retrete fumar, pensava: “ Há de ser normal, de manhã, uma pessoa esquecer-se de acabar as coisas e depois já não conseguir abandonar a preguiça instalada para as acabar”.

Reparava nestas coisas entre caretas de café amargo e passeios da língua pelo cigarro apagado.

            Pedro Couto preferia a ideia de estar a ir á ideia de chegar. Adorava estar a  fazer coisas em vez de adorar as coisas que tinha feito.

            Por vezes saía sozinho e deleitava-se a comer uns camarões grandes e gordos, sozinhos, no meio de canecas de cerveja, sozinhas, numa qualquer cervejaria. É que Pedro Couto pertencia àquele género de pessoas que tenta satisfazer os seus apetites de momento e não programar os apetites de amanhã. “Há de ser normal” pensava “não querer incomodar os outros com telefonemas e sugestões de última hora, invadindo a sua privacidade”.

            Ao longo do tempo Pedro Couto tinha adquirido uma enorme capacidade de independência. As coisas tinham o seu tempo. Não corria. Levantava-se às horas que pudesse. A não ser que tivesse de ir ao médico. O que significava levantar-se antes disso.

            Ia acordando (o que lhe demorava sempre meia hora depois de se ter levantado) com cafés, cigarros e, algumas vezes, música. Ia tomar café forte à rua, comprava o jornal e lia os anúncios e quatro ou cinco notícias mais macabras sobre mortes “incrivelmente dramáticas”. Não se preocupava com a política. Escrevia umas coisas que editava. O que lhe dava algum “dinheirito” (como lhe chamava, estabelecendo assim a diferença).

            Adorava sexo. Dava-lhe tanta importância que lha retirava, uma vez que não considerava que fosse possível, neste mundo, ele ter a importância merecida.

            Era muito romântico. Isso era. O que também não tinha importância nenhuma neste mundo. Adorava a ideia de romantismo. Quando tinha tempo e disposição lá se masturbava “Há de ser normal uma pessoa masturbar-se” pensava “porque não está para estar à procura de sexo sem mais nada. E ninguém se pode ligar a ninguém só porque fodeu com alguém. Não é romântico”.

            Assim era, normalmente, a vida normal de Pedro Couto, que já tinha estado duas ou três vezes profundamente apaixonado por duas ou três pessoas “ideais” e “lindíssimas de espírito” que rapidamente tinham passado à “neurose e psicose profundas” e à “maior verruga espiritual sem qualquer possibilidade de ser institucionalizada por mais ditador e demente que fosse o Estado que a recolhesse”.

            Assim era, normalmente, a vida normal de Pedro Couto, que já tinha mudado duas ou três vezes de casa, para duas ou três zonas “giras, com vista e sossegadas”, que rapidamente se tinham transformado em “podres de velhas, antro de selvajaria e refúgio de coscuvilheiras”.

            Pedro Couto decidiu, assim, de repente, mudar de casa. Tomar café noutro café. Ver outras pessoas. Continuar sem saber o nome dos vizinhos. Não ter de receber telefonemas dos “amigos” durante o tempo em que eles não estivessem habituados ao novo número, enfim... “Há de ser normal uma pessoa querer isolar-se e tranquilizar-se de vez em quando” pensava.

            Um dia, Pedro Couto mudou-se. Ia a passar por um bairro pequeno, com algumas árvores, e viu uns quadrados brancos no último andar (3º) de um prédio. Fez perguntas ao porteiro que tinha um ar muito pouco animado e lhe respondeu com “sins” e “nãos” até ter de fazer o esforço de dizer “sessenta e cinco mil escudos por mês”. Pedro Couto mudou-se ao fim de uma semana. A casa era uma ampla assoalhada, com muita luz, um forno antigo e uma casa de banho. Pedro Couto entrou na casa de banho que sentia pela primeira vez como sua e decidiu que era o seu sítio favorito. Olhou à volta. A banheira não era suficientemente grande para os seus banhos de imersão a seguir a uma escrita mais intensa. Tornou a olhar e fixou-se no autoclismo. Sentou-se na retrete e fumou um cigarro. Continuou a olhar para o autoclismo. Era um daqueles que ficam pendurados na parede e têm uma corrente que se puxa. Apagou o cigarro na retrete e puxou o autoclismo. Nada. Puxou abanando três vezes seguidas. Nada. Puxou outra vez. Nada. “Caralho” pensou. Apanhou a beata da retrete e deitou-a no lixo. Dirigiu-se para a janela. Olhou para baixo. Nada. Olhou em frente. Nada. Dirigiu-se à porta na esperança de ouvir um barulho de vizinhos. Colou o ouvido à porta. Nada. “É calmo o sítio” pensou. Decidiu ir à rua comer qualquer coisa e conhecer melhor a zona. Abriu a porta. Um barulho imediato ocorreu na casa de banho. Um barulho de descarga de água. Correu para a mesma e sim, era a descarga do autoclismo. “Bonito” disse. Saiu. Carregou no interruptor da escada. Não havia luz. Acendeu o isqueiro. Chegou à rua. Um bêbedo fumava um cigarro e falava sozinho. Uma mulher falava sozinha. Tudo normal. Olhou para o fundo da rua e reparou numa luz ténue de uma porta. Caminhou. Era uma pequena tasca. Entrou. Sentou-se. Pediu uma sopa de feijão, meia dose de frango frito com batatas fritas muito bem fritas, um jarro de vinho tinto da casa e pão com azeitonas. Foi à casa de banho lavar as mãos. A primeira coisa que lhe saltou à vista foi o autoclismo. Era um daqueles pendurados na parede com uma corrente que se puxa. Puxou. Imediatamente uma descarga de água encheu a casa de banho de som. Suspirou de alívio. Voltou para a mesa e pegou num bloco onde escrevinhou umas ideias enquanto comia a sopa. Finda esta, voltou-se para as azeitonas. Depois de dançar com o garfo na tentativa de agarrar uma, optou pelas mãos. Depois foi a vez do frango e do pão. Durante o festim ia regando o copo com o vinho.

            Satisfeito voltou a casa. Quando abriu a porta ficou uns momentos a ouvir o silêncio. Era uma novidade ainda, aquela ampla assoalhada. Dirigiu-se à casa de banho e puxou o autoclismo. Nada. Puxou três vezes seguidas. Nada. Puxou outra vez. Nada. “Foda-se” exclamou. Pôs música e sentou-se para calmamente fumar um cigarro. Levou os dedos ao bolso, automaticamente, para executar o ritual de todas as noites. “Caralho” exclamou, ao verificar que não tinha cigarros. “Tenho de voltar á tasca” pensou. Dirigiu-se para a porta. Abriu-a. Um barulho imediato ocorreu na casa de banho. Um barulho de descarga de água. Correu para a mesma e sim, era a descarga do autoclismo. “Bonito” disse. Saiu. Carregou no interruptor da escada. Não havia luz. “Caralho para esta merda” disse. Acendeu o isqueiro. Chegou á rua. Um bêbedo fumava um cigarro e falava sozinho. Uma mulher falava sozinha. Tudo normal. Dirigiu-se á tasca, comprou cigarros e voltou para casa. Sentou-se na cadeira e gozou o cigarro. “Há de ser normal uma pessoa ter contrariedades nos primeiros dias de casa nova” pensou.

Deixou-se levar por estes pensamentos enquanto olhava para o fumo que se contornava e deformava até se esvair, tal como as pessoas. Decidiu experimentar mais uma vez o autoclismo. Puxou. Nada. Puxou outra vez. Nada. Deixou-se cair na tampa da retrete.

De repente os olhos de Pedro Couto brilharam e um sorriso alucinado vislumbrou-se-lhe nos lábios arroxeados do vinho tinto da casa da tasca. Correu para a porta. Abriu-a. Um barulho imediato ocorreu na casa de banho. Um barulho de descarga de água. Correu para a mesma e sim, era a descarga do autoclismo. Correu para o telefone. Marcou um número com uma gargalhada descontrolada. “Mãe” gritou com uma gargalhada descontrolada “Mãe, o autoclismo só funciona se eu abrir a porta... se eu sair...” e continuou numa gargalhada descontrolada. Rodopiou com a gargalhada extasiante. A janela da varanda estava aberta. Pedro Couto embateu contra a janela e pensou: “Do mal o menos, podia ter caído”. E continuou a rir, a rir, a rir. Até que se sentiu zonzo. Deixou de sentir as pernas. Caiu redondo no chão. Sentiu um líquido a cair pela nuca. Levou os dedos à nuca e sentiu um orifício no qual cabia o seu dedo todo. Afinal a janela não o tinha salvado. Não se ouvia ninguém no prédio. Pedro nem se conseguia arrastar para abrir a porta e poder ouvir, pela última vez, o som do autoclismo.

Bruno Schiappa - 1995


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