O que muda, o que se transforma e o que se cumpre!


 A maior mudança que acontece e é incontornável é a nossa morte. E dessa, temos a sensação de ter medo. Mas do que temos mais medo é da vida e das mudanças sucessivas. Se pensarmos que a vida é movimento, aceitamos melhor o que muda. Eventualmente porque estávamos demasiados conformad@s com o "sítio" onde nos encontrávamos e a própria natureza sabia isso. Nessas alturas, a vida muda o nosso cenário. Por vezes pensamos que é um cenário mau mas depois acabamos por perceber que foi o melhor que nos aconteceu porque a outra direção iria ser sempre pior. E esse pensamento transforma-se num pensamento mágico. E aí, percebemos que vimos de outros passados karmicos que tinham de ser fechados e cumpridos para nos libertarmos.

Assim seja!


Sobrevivência!



 Tem sido um período de sobrevivência. Sobreviver significa viver acima. Neste caso, acima do que acontece de mau. Sinto a minha vida como isso mesmo: vida. O pulsar do sangue. O bombear do coração. Marcam o ritmo. As pulsões e impulsos marcam a dança. A sede de amar, de viver, de usufruir, de partilhar, de sentir, de ser. É isso. De ser. Equivalem a um turbilhão de estados ébrios mas bons. Ávidos. A minha vida é uma dança. Recuso-me a ser escravo de um futuro que nunca irá acontecer. Procuro ser o momento e esticá-lo até estar cumprido. A minha vida é a minha vida, não é de mais ninguém E vice-versa. Lembro-me muito do Mário de Sá Carneiro e do Fernando Pessoa mas não quero ser como eles Triste e vencidos. Quero manter a plenitude de saber que, também agora, tenho amigos bons e outros que nem amigos são. Todos me fazem falta. Por vezes até penso se mudaria alguma coisa se eu beijasse os meus não-amigos. E se eu me lembrar muito de quem amei, isso fará de mim um falta-de-amor-próprio ou o contrário? Muito amor próprio. Recebo o que me acontece. Umas vezes com ansiedade e outras também não. Depende da medicação!

O criativo não tem nunca uma noite sossegada




Há uma espécie de maldição que se cumpre na insónia do escritor. A noite chama a inspiração e, quem conhece os auters maudites, sabe que é incontornável. A noite chama a lua. A lua chama a vigília e as Brumas. De Avalon ou outras. Há uma espécie de não sei quê, como diria o Camões, que fustiga os auters maudites. Como se o que eles escrevem não interessasse ou fosse demasiado rebuscado. Não é. É tão simples. E, dopo, la nave va! Simplesmente. Uma vez, eu estava perdido, dormia de cama em cama, consumia coisas horríveis (doces e não sei quê), mas depois, quando fiz 11 anos, decidi acabar com isso. Pedi à minha mãe uma cama e deixei de comer doces. E pronto. Mas continuei a escrever sobre o fumo do cigarro. Apesar de só ter começado a fumar com a idade avançada de 13 anos! É cosi. E la nave va!

Decididamente!



 Nunca pensei, decididamente, que iria chegar a este ponto. Um ponto de quase não retorno. Olho-me e não me vejo. No meio do belo há o hediondo mas no meio do hediondo não há nada. E a futilidade é hedionda. Infelizmente surge sem que nos apercebamos. Que gente é esta que deixei entrar na minha vida de modo tão importante e diário? Serei um estulto. Serei carente. Serei um solitário. Mas sempre vivi comigo de modo incomparável ao da vida. Como posso ser não me sendo nestes tempos com estas cores? O que será que me aconteceu e em que contexto? A minha casa é um caos mórbido de triste que está. Iludo-me de mim no álcool do dia-a-dia.  Deixei de ser. Não sei se voltarei a sê-lo. Talvez continue a viver pelo carinho e compaixão que tenho pelo meu cão. O Liubóv (Amor em russo). Tive uma vida feliz até me ter envolvido com o lado errado das pessoas, dos senhorios, dos vizinhos e do dia. O lado errado não é o da noite, é o do dia!

Regresso a mim e encontro o que é maior do que eu!


 Cada dia que passa e me ligo às pessoas, um passo maior é dado para um abismo de prazer que, se não encontrar tréguas, se irá transformar num poço escuro e de difícil saída! Devo dizer que é possível renascer e poder sentir. Mas é preciso estar atento e alerta. Caso contrário esse renascimento será uma fatia de algo que nos faz perder o rumo. Nunca pensei que iria ser um conjunto de fragmentos mas os fragmentos sempre me procuraram. Será talvez a beleza de sentir que me move mas eu penso o sentir e por isso sinto o que penso e as palavras são imagens. Despertaste em mim a certeza de que eu não sou eu mas um veículo para chegar aos como tu mas, sobretudo, a ti. E ser esse veículo é quase insuportavelmente belo. Ou definitivamente insuportável porque, o que poderia ser, nunca será! Não nesse teu padrão tradicional! Mas gostei de vos sentir tão (ou tão confortavelmente pouco) juntos!

Forte abraço!

Un bel di vedremo!

 



E de repente tomba-se de novo. A boca quer sugar o ar do outro. Respirar o outro. Numa antropofagia erótica que anuncia a elevação. E de repente, o que se queria suave, tem a força de cavalos na bruma. Pede melancolia e pranto. E no entanto, de repente, o coração fica repleto de júbilo. De prazer. Mesmo na dolorosa sensação de ausência presente porque, de repente, tudo faz sentido no regresso ao Mar que corre nas veias e transcende a natureza de quem se quer solitário.

De repente, tudo me transporta para reviver o que julgava perdido. O que julgava morto. O que parecia nunca mais regressar. E fico com a tua imagem e com o sorriso doce da dor!

https://youtu.be/c-r2vu4t9-g


A Carteira Voadora



    Era uma vez uma carteira linda, feita de couro castanho vermelho. Era robusta e bem cheiinha com cartões e documentos. Tudo o que ela precisava para se sentir verdadeiramente uma carteira no exercício da sua missão. Além de que lhe dava um estatuto de "muito importante". Ela vivia muito feliz, sempre no coração de quem a transportava. Mas, certo dia, começou a perceber que o sítio onde estava, tinha mudado. Parecia que estava em qualquer lugar muito fundo e escuro. Um poço. Até com pouco ar, pensava ela. Achou, por baixo da pele castanho-avermelhado que a cobria, que alguma coisa estava errada. Teria deixado de ser "muito importante"? Por vezes, quem nos ama, tem problemas graves, deixa de se amar, fica vazio e apático e tudo parece ter perdido o interesse, pensou ela, dotada da "psicologia" e da empatia que sempre a tinham caracterizaram. A decisão que tomou foi de dar um tempo para perceber se era algo reversível ou se iria manter-se daquela maneira por tempo infinito. As coisas mantiveram-se desagradáveis durante quase um ano. Abriam-na para pôr ou tirar coisas mas nunca com o carinho de outrora. Sempre e cada vez de modo automático ou atabalhoado. Certo dia, decidiu que assim não podia continuar. Esse dia coincidiu com o meter de uma soma muito simpática dentro dela. E foi aí que ela teve a oportunidade de fazer um esforço mental para ganhar asas e voou do poço onde a transportavam, primeiro para o chão e depois para paragens mais distantes. Foi muito agradável durante alguns minutos mas, depois de a violarem, atiraram-na para o chão, para um lugar escuro, muito pior do que o poço fundo e sombrio. A carteira desejou, com toda a sua força, regressar ao poço sem fundo porque aí sempre conhecia o calor das mãos que a tocavam e acredita que vai conseguir voltar. E o poço sem fundo também tem saudades dela. Talvez ela consiga dar a perceber ao poço que é "muito importante" porque as mãos que a tocam com carinho, mesmo nos tempos de vazio, a fazem sentir-se assim!
 

Por vezes ponho no papel o que me vai na alma. Outras, ponho na alma o que me vai no papel!

Soul and Paper. drawing by Bruno Schiappa. January 2024

 Muitas vezes ponho em papel o que me vai na alma. Outras vezes engulo em seco e continuo a estrada. Nunca me tinha apercebido de modo tão claro que as pessoas não são o mais importante para as pessoas. Durante muitos anos, a minha prioridade eram sempre as pessoas. E em pessoas incluo também os animais assim como nos animais incluo as pessoas. Acreditava que ninguém fazia nada de prejudicial para os outros de modo consciente.

Não estava em mim, aceitar tudo. O que acontecia era que não queria desiludir as pessoas. Já havia tanto dissabor na vida que eu não queria contribuir para mais um dissabor para este ou aquele.
Creio que chegou a altura de mudar isso.
Sempre fui independente e, curiosamente, conforme ia frequentando mais as pessoas - paradoxal em relação ao que escrevi acima mas que, passo a explicar, não desiludir passava por não as frequentar durante muito tempo - ia deixando a porta da minha independência ser fechada.
Ora, o ano passado, foi muito complicado para mim e para várias pessoas mas, como cedo - e como sempre - falei logo sobre isso, consegui chegar ao final do ano, ileso.
E muita coisa tenho para que tal não acontecesse. Mas ali a meio do ano, as pessoas foram silenciosamente eloquentes na atitude de "queremos saber do Bruno bem e não mal". Basicamente as pessoas são dessa natureza. Tirando 3 que o disseram frontalmente.
Eu sempre ouvi as pessoas. Sem as julgar. Não julgo ninguém. A não ser que me invadam o respeito próprio ou do Liubóv 🙂


E depois, nada, ou tudo?





 "Ela disse que, de ora avante, iria ser tudo diferente. Nada voltaria a ser como antes, sobretudo na ordem do dia. Os dias tinham passado de muito felizes a muito ativos, como se uma coisa invalidasse a outra. Procurou no mais recôndito cofre do peito, aquilo que já tinha sido um tesouro - a independência.

Alguma coisa se tinha quebrado no meio do estalar da espuma das ondas nos lábios. Um sabor a sal que ela bem conhecia.
Nada disto implicava, apesar de tudo, que voltasse a ser quem fora. A maior parte das pessoas, afinal - percebera - não sabia nada dela nem do que fazia ou era capaz. Nada a fazer quanto a isso. Desvalorizar. Desapegar. Deixar vir e fluir?
Não, isso era impossível. Sem projetos, Idalina não conseguia viver porque não sabia fazê-lo.
Tinha de agir para ser.
Enquanto ela falava com o espelho sobre esta e mais questões, ele divagava no pensamento. Fumava um charuto que deitava um cheiro horrível para toda a gente, menos para ele. Para Vitor, a vida era um plano composto de várias etapas que se tinham de cumprir, correndo o risco de ficar a meio ou perdido no meio de coisa nenhuma. O que fazia não lhe importava muito desde que o deixasse viver financeiramente confortável. E havia o pagode, as noites com amigos que não incluíam Idalina. O que ele pensava, na maioria das vezes, era até quando iria conseguir ter ereção e não ficar apenas pelo desejo que sentia ao ver glúteos redondos e pernas bem torneadas. Afinal, Vitor cumpria muito bem o seu papel. O da força e virilidade, da campanha e da vitória. Mas ela também. Ou não fosse a sua insatisfação o gatilho da sua profunda inquietação e busca.
Noutra assoalhada estava outra mulher. Tão ou mais profunda que Idalina, que também pensava na sua condição de elemento de uma tríade amorosa. Se bem que nunca ficasse insatisfeita, fisicamente, Ilda sentia que não era tão desejada como queria, por não ser única, e aí, pensou Ilda, reside o mal de todos nós. A insaciedade é movida pela falta de exclusividade.
Bruscamente, Idalina desatou num conjunto de esgares e gritos. As águas tinham rebentado. Soprou várias vezes. Vitor e Ilda correram para ela. Deitaram-na e ajudaram-na a ter o menino. Tal como tinham desejado. Nasceria em casa. Sem artifícios.
O menino chorou. Vitor, Idalina e Ilda ficaram em silêncio. Olharam para o menino e pensaram em simultâneo: o que é que vieste cá fazer? Isto é muito complicado.
O menino olhava para as caras deles mas os seus olhos dançavam como se estivesse a ver várias pessoas, várias cores e várias animações.
Mas tudo latejava já para um futuro em que, o menino, iria fazer da vida, o seu ballet favorito."
BS 16/01/2024

Como fazer quando não sei o quê?



Hoje o dia acordou cinzento. Em mim. Acordou cinzento em mim. Não lá fora. Na testa. Dentro da testa.
Escrevo porque não sei o que mais possa fazer. "Esta ânsia de me descer é que me entardece. E contudo como me sinto orgulhoso ao varar-me." Mário de Sá-Carneiro. 
Contudo, quando os dedos me chamam, faço, faço e escrevo, escrevo e faço e toco. Toco umas cordas de violino. 
Assim estava Jaime. A persona que criei no hospital, em 2007. 
O homem que só sabia pensar no que fazia em vez de usufruir e, quando pensava depois de fazer, tentava perceber o que tinha feito e o porquê.
Mas, o que eu sei que sou, não existe. Não sei ser sem me mexer nem sem estar e no entanto sou, estando no mesmo sítio mas em vários nesse modo e aí mexo-me. Mexo-me tanto. Mexo-me muito.
Se eu não me mexer por mim, quem mexerá?
E assim vou indo quando os limites são fora do meu controle e não me impelem a nada se não esperar.
Por não sei como fazer seja o que for quando não sei o quê.
Acho que vou parodiar a Passagem das Horas,
do Pessoa.


Erótica


Estou a acabar de estar em Genéve, na Suíça. Custa-me dizer "Genebra". Genebra é, para mim, uma bebida com sabor a Idade Média, desde que eu era adolescente e estudava História no Liceu.
Desde que cheguei a Genève, algo erógeno desceu em mim. Uma espécie de estímulo invisível que de repente se apodera da minha zona baixo ventre. Do pénis e dos testículos. Mas também das coxas. Sinto-me entre o desejo e a vontade de satisfazer o desejo. Mas não passa disso. Reparo em nádegas bem desenhadas que quase rompem as calças de flanela, tal é a volúpia com que se manifestam. Levo a minha mão direita à zona da braguilha das calças e penso que podia rebentar de desejo, Ter uma explosão branca por dentro das calças. Penso que poderia facilmente deixar-me conduzir num encontro fortuito, numa qualquer parte de uma qualquer parede que irrompesse por um prédio, e ser alvo de um êxtase rápido, fortuito, inconsequente e, por isso mesmo, de um prazer escalado. Mas rapidamente respiro fundo. Estou a chegar ao hotel. O frio lembra-me que a temperatura da imaginação sobe mas a frieza da incapacidade de estimular alguém, estando eu sóbrio, é mais real e chama-me para os pingos de chuva que caem. E assim vão passando os anos numa Erótica que me sucumbe e me vence, por não se conseguir realizar.
Amanhã passas, Suíça, e Lisboa regressará ao comando de um outono perpétuo, no meu baixo ventre. Quando sóbrio.
Genéve, 3 de novembro de 2023  

 

E agora o quê?

 Para quem gosta de ler e "viajar" pela leitura, devo referir que estou num momento bom. Claro que amanhã ou para a semana, posso ir ao fundo de novo e depois regressar à tona. É assim a minha natureza e é com ela que consigo acreditar que, quando me leem, guio-vos numa espécie de voo sem abismos. Apenas o prazer dos sentidos. O tato, o olfato, o paladar, a audição, a visão. Sabores, odores e detalhes. E gosto dos asiáticos. São livres no corpo. Há muitos aqui no bairro. E cumprimentam, e sorriem e abraçam. E a vida faz-se de si e por si. E demoramos tanto até perceber isso. Ainda bem que ainda me sinto atlético! 



Sem rumo!

 É uma coisa curiosa. Este ano curioso, mãe, de todas as situações limite, mas não de extremo, tem sido uma espécie de "não-sei-quê".
A minha vida não é minha. As minhas dores não me pertencem. E, no entanto, sou eu mesmo quem pensa nelas. E não outro. Nenhum "outro" poderia pensar, de modo tão afetuoso e intenso, na minha condição de ser ambíguo e escorregadio. Nem sequer tu, minha mãe, terás tido a possibilidade de, um dia, um momento, vislumbrar que eu sou nada se não estou em função. Um dia, quando acordei, arrepiei-me porque o tempo tinha passado num ápice. Quer dizer, tu, minha mãe tinhas-me avisado. Não diretamente mas ao cantarolares o "Ó tempo, volta p'ra trás".
Dizem que as mães nos ensinam tudo. É verdade. Mesmo quando eu tinha de fazer a sesta contigo e não gostava de dormir à tarde, tu estavas a ensinar-me que a vida precisa de um intervalo. Mas eu nunca percebi isso. Sempre achei as sestas uma perda de tempo.
Um dia comecei a sentir que não pertencia ali, nem a lugar nenhum, e o teatro e a dança tomaram conta de mim. Mas o cantar era o mais importante. Ainda hoje. 
Sem teatro, dança e canto, não existo. Estou sem rumo. O problema é que isso vai terminar, mais dia menos dia, e eu vou ficar ainda mais sem rumo do que o sem rumo que me fez ligar à Arte!
Obrigado mãe
Desculpa mãe!

!

A tristeza impõe-se sem comandarmos!

 Hoje regresso à melancolia que torna os dias menos brilhantes. Tenho na sala um pequeno quadro que diz "days are only as grey as you allow them to be". É algo que eu gostava de acreditar e comandar. Mas a tristeza chega de mansinho e cola-se à parede da alma. Depois de, durante alguns monentos, me render a ela, lá inspiro e decido levantar-me e tentar respirar em modo tai chi, que domino. Mas ela tenta levar a melhor e lembrar-me o pesadelo desta manhã, em que o meu querido cão foi atropelado e ficou esmagado apenas no corpo e a cabeça e o rabo tremiam. A tristeza sabe que eu sou freudiano e por isso o pesadelo tem um sabor mais amargo.

Mas, mesmo assim, agarro-me à ideia do quadro e ao meu amor pelo Liubóv  e penso "não me vais vencer com esse golpe baixo".



Fumar pode matar!

 

FUMAR PODE MATAR 




 

 

            Era uma vez um cachorrinho muito peludo, todo preto e com olhos azuis. Tinha nascido há um mês e sentia-se inadaptado no meio dos irmãos e da mãe.

            Do outro lado dos ares, do rio e do mar, uma criança num corpo de homem cumpria os seus deveres e responsabilidades para com a mãe que estava a deixar o planeta terra para rumar a outras paragens.

            A criança no corpo de homem não percebia porquê que a mãe queria partir e deixá-lo inadaptado no meio do resto das pessoas.

            Do outro lado, o cachorrinho mamava pouco. Apenas o essencial para se manter vivo e à espera que alguma coisa boa acontecesse. Se havia alguma coisa que ele sabia que não queria era ficar sozinho. Era assim que se sentia sempre que os irmãos lhe roubavam o lugar na teta predileta. Ele desistia logo porque não lhe apetecia lutar com os irmãos e afastava-se porque a mãe manifestava um desapego para com ele que o fazia sentir-se desistente.

            A criança no corpo de homem comia cada vez menos e as suas refeições eram à base dos seus receios e por isso sentia fome com aquilo que o alimentava. Isto, claro, do tal outro lado. O oposto ao do cachorrinho.

            Chegou então o dia em que a mãe da criança no corpo de homem partiu para sempre. Rumando sabe-se lá para onde. A criança no corpo de homem, mais uma vez, mesmo sem perceber porquê que a mãe o deixava assim, cumpriu os seus deveres e as suas responsabilidades no último adeus à mãe.

            No meio do último adeus, uma fada disse à criança no corpo de homem que do outro lado, o oposto àquele, havia três cachorrinhos que procuravam um amigo. A criança no corpo de homem, como se sentia sozinha e a precisar de um amigo, respondeu à fada que iria com ela por esses ares para cativar um dos cachorrinhos. Isto 19 dias depois de o cachorrinho ter vindo ao mundo.

            Combinaram tudo e a fada, com as suas teias de fio mágico, foi buscar a criança no corpo de homem no dia acertado e levou-a por ares e rio e mar até que pousaram numa terra macia onde um mago com um sorriso aberto os recebeu conduzindo-os de imediato ao sítio onde estavam os cachorrinhos que precisavam de um amigo. Isto 30 dias depois de o cachorrinho ter nascido

            A cinco metros do sítio onde os três cachorrinhos mamavam, um deles, o tal de olhos azuis e muito pêlo todo preto, soltou de imediato a teta da mãe, sem que nenhum dos irmãos lha tirasse como era habitual, e dirigiu-se à criança no corpo de homem cheirando-lhe os pés e olhando para ela nos olhos.

            O mago e a fada disseram em coro, “ele quer que sejas tu o seu amigo”.

            A criança no corpo de homem selou o acordo de imediato e a fada trouxe os dois de regresso depois de terem partilhado um bom lanche com o mago. Era a primeira vez ao fim de muito tempo em que a criança no corpo de homem comia sabendo-lhe tudo muito bem. E sabendo tudo a comida. Não a receios.

            A fada, percebeu que eles precisavam de ficar sozinhos para se conhecerem e foi rápida nas despedidas seguindo para tratar de outros assuntos mágicos.

            Durante as primeiras semanas, a descoberta entre ambos foi um misto de êxtase e ferida.

            Um dia, a criança no corpo de homem, sem saber porquê, talvez por ainda não ter percebido as razões da partida da mãe, o que a deixava impaciente, bateu forte no cachorrinho quando ele não obedeceu. O cachorrinho ganiu com tristeza. Como se pedisse: não me faças isto.

            A criança no corpo de homem cresceu de repente com aquele pedido. Assustou-se consigo e jurou amar sempre e nunca abandonar o cahorrinho.

            Durante os primeiros anos, a criança que já era homem sentia remorsos de um dia ter feito aquilo mas o cachorrinho, que crescera depressa, sentindo-o triste enquanto homem, olhava-o nos olhos e lambia-lhe as mãos dizendo que o tinha posto à prova para ver se podia contar mesmo com ele para sempre e que já lhe tinha perdoado a agressão. A criança no corpo de homem que já era mais homem no corpo da criança no corpo de homem suspirava e acalmava mas no fundo continuava a sentir um profundo remorso.

            Ao fim de seis anos, a criança no corpo de homem já homem no corpo da criança no corpo de homem, que não podia passar meio-dia sem o cachorrinho que agora era um belo e desenvolto cão, percebeu finalmente porquê que a mãe tinha partido naquela altura. Se ela tivesse ficado, a fada não teria dito nada à – então – criança no corpo de homem e nem ele – agora homem no corpo de homem mas com a alegria de uma criança – nem o cachorrinho tinham encontrado o seu melhor amigo, e ainda hoje se sentiriam inadaptados e, ainda pior, assombrados por isso.

            O homem no corpo de homem tinha dado ao cachorro o nom e de Sombra, quando ainda era uma criança no corpo de homem e, o cachorro, um belo cachorro. Porque o cachorro seguia-o para todo o lado.

            Mas um dia, alguma coisa voltou a estar errada. O homem acordou. Virou-se languidamente na cama agarrando a almofada como se esta o pudesse salvar da realidade. O tecido fresco dava-lhe conforto. Como se fosse uma ponte para o útero materno, do qual não se lembrava mas que, sabia-o agora, tinha sido o último lugar seguro onde tinha estado.

            Depois ergueu a cabeça. Olhou em volta e reparou no cinzeiro com cigarrilhas que fumava há quatro anos. Ao lado delas, as tampas de algumas cervejas ainda estavam por deitar fora. Alguma coisa tinha perdido o encanto e a vida já não lhe parecia passível de ser descrita como um conto de fadas.

            Decidiu levantar-se mas foi derrubado pelo seu companheiro Sombra. O cão que lhe alimentava a alma e a pele com o entusiasmo com que sempre o acolhia.

            O homem olhou para o prato do Sombra e achou melhor enchê-lo com patê de pato. O favorito de Sombra.

            Depois arrastou-se para a casa de banho e lavou a cara e os dentes. Vestiu-se. Não lhe apeteceu tomar banho.

            Arrumou as poucas coisas que eram suas e saíram os dois da casa. Uma casa que os tinha acolhido nos últimos cinco dias. Uma casa acolhedora e mais viva do que ele, o homem, se sentia.

            Sombra correu satisfeito por o sol o brindar com luz e entre arbustos e marcações de território lá chegaram ao carro.

            Puseram-se a caminho.

            A única paragem foi para um rápido café e algum combustível.

            Já afastados da cidade, no meio da estrada, o homem acendeu uma cigarrilha.

Enquanto trauteava uma canção antiga, bateu sem querer na cigarrilha no canto da boca que caiu para cima da roupa e sobressaltou o homem.

Entre os gestos rápidos para apanhar a cigarrilha que rolava para outro lado do assento, o homem perdeu o controlo do volante, embatendo na berma da estrada.

Ao capotar, o carro deu duas voltas inteiras e, quando ficou de novo na posição normal, o vidro da frente estava partido e o homem curvado sobre ele, com as órbitas espetadas nos bicos dos estilhaços.

Não respirava. Não se mexia. Uma cor vermelha corria pelo pescoço como se de um riacho de vida se tratasse.

Os vidros das janelas iam abertos de modo que Sombra saiu do carro pela janela da direita. Estava ileso. Sacudiu-se.

Ficou sentado na estrada, à espera que o homem se erguesse. Nada. Nem um movimento.

Uma brisa mais forte fez o maço quase vazio voar pela janela. Caiu ao lado de Sombra com o dizer: Fumar Pode Matar.


Bruno Schiappa - 2010

O Autoclismo - escrito em 1995


O AUTOCLISMO

 

            Pedro Couto tinha nascido, tanto quanto se lembrava do que lhe tinham contado, numa madrugada de outono. Rodeado por aquilo que, segundo alguns, estava na origem do raio de vida que ele construía. Muito antes de se lembrar de sair de casa da mãe, já tinha saído. Tinha saído sempre. Sempre que faltava o pão, que faltava a luz ou que não davam novela.

            O mais estranho é que, de vez em quando, tinha uma necessidade incrível de regressar àquela casa pequena e cheio de berros e exaltação.

Tinha um grande sentido do dever, que questionava constantemente, e isso obrigava-o a gostar de regressar á casa materna.

Quando a porta se abria já estava irritado. O que o chateava bastante pois estava em profunda contradição com a imensa alegria que tinha sentido na rua, pela ideia. Pela ideia de ver as caras familiares cheias de sorrisos, por sua vez, de o reverem.

Pedro Couto não desistia. “Há de ser normal lembrar-me do antes de e não gostar do durante e sentir-me muito aliviado com o depois de”, pensava. E lá continuava com o seu dia-a-dia que considerava normal mesmo quando não era bem assim. Tentava. Queria. Mesmo quando acordava e ia com o cigarro apagado para a cozinha, aquecia o café (no qual se esquecia de pôr o açúcar) e ia para a retrete fumar, pensava: “ Há de ser normal, de manhã, uma pessoa esquecer-se de acabar as coisas e depois já não conseguir abandonar a preguiça instalada para as acabar”.

Reparava nestas coisas entre caretas de café amargo e passeios da língua pelo cigarro apagado.

            Pedro Couto preferia a ideia de estar a ir á ideia de chegar. Adorava estar a  fazer coisas em vez de adorar as coisas que tinha feito.

            Por vezes saía sozinho e deleitava-se a comer uns camarões grandes e gordos, sozinhos, no meio de canecas de cerveja, sozinhas, numa qualquer cervejaria. É que Pedro Couto pertencia àquele género de pessoas que tenta satisfazer os seus apetites de momento e não programar os apetites de amanhã. “Há de ser normal” pensava “não querer incomodar os outros com telefonemas e sugestões de última hora, invadindo a sua privacidade”.

            Ao longo do tempo Pedro Couto tinha adquirido uma enorme capacidade de independência. As coisas tinham o seu tempo. Não corria. Levantava-se às horas que pudesse. A não ser que tivesse de ir ao médico. O que significava levantar-se antes disso.

            Ia acordando (o que lhe demorava sempre meia hora depois de se ter levantado) com cafés, cigarros e, algumas vezes, música. Ia tomar café forte à rua, comprava o jornal e lia os anúncios e quatro ou cinco notícias mais macabras sobre mortes “incrivelmente dramáticas”. Não se preocupava com a política. Escrevia umas coisas que editava. O que lhe dava algum “dinheirito” (como lhe chamava, estabelecendo assim a diferença).

            Adorava sexo. Dava-lhe tanta importância que lha retirava, uma vez que não considerava que fosse possível, neste mundo, ele ter a importância merecida.

            Era muito romântico. Isso era. O que também não tinha importância nenhuma neste mundo. Adorava a ideia de romantismo. Quando tinha tempo e disposição lá se masturbava “Há de ser normal uma pessoa masturbar-se” pensava “porque não está para estar à procura de sexo sem mais nada. E ninguém se pode ligar a ninguém só porque fodeu com alguém. Não é romântico”.

            Assim era, normalmente, a vida normal de Pedro Couto, que já tinha estado duas ou três vezes profundamente apaixonado por duas ou três pessoas “ideais” e “lindíssimas de espírito” que rapidamente tinham passado à “neurose e psicose profundas” e à “maior verruga espiritual sem qualquer possibilidade de ser institucionalizada por mais ditador e demente que fosse o Estado que a recolhesse”.

            Assim era, normalmente, a vida normal de Pedro Couto, que já tinha mudado duas ou três vezes de casa, para duas ou três zonas “giras, com vista e sossegadas”, que rapidamente se tinham transformado em “podres de velhas, antro de selvajaria e refúgio de coscuvilheiras”.

            Pedro Couto decidiu, assim, de repente, mudar de casa. Tomar café noutro café. Ver outras pessoas. Continuar sem saber o nome dos vizinhos. Não ter de receber telefonemas dos “amigos” durante o tempo em que eles não estivessem habituados ao novo número, enfim... “Há de ser normal uma pessoa querer isolar-se e tranquilizar-se de vez em quando” pensava.

            Um dia, Pedro Couto mudou-se. Ia a passar por um bairro pequeno, com algumas árvores, e viu uns quadrados brancos no último andar (3º) de um prédio. Fez perguntas ao porteiro que tinha um ar muito pouco animado e lhe respondeu com “sins” e “nãos” até ter de fazer o esforço de dizer “sessenta e cinco mil escudos por mês”. Pedro Couto mudou-se ao fim de uma semana. A casa era uma ampla assoalhada, com muita luz, um forno antigo e uma casa de banho. Pedro Couto entrou na casa de banho que sentia pela primeira vez como sua e decidiu que era o seu sítio favorito. Olhou à volta. A banheira não era suficientemente grande para os seus banhos de imersão a seguir a uma escrita mais intensa. Tornou a olhar e fixou-se no autoclismo. Sentou-se na retrete e fumou um cigarro. Continuou a olhar para o autoclismo. Era um daqueles que ficam pendurados na parede e têm uma corrente que se puxa. Apagou o cigarro na retrete e puxou o autoclismo. Nada. Puxou abanando três vezes seguidas. Nada. Puxou outra vez. Nada. “Caralho” pensou. Apanhou a beata da retrete e deitou-a no lixo. Dirigiu-se para a janela. Olhou para baixo. Nada. Olhou em frente. Nada. Dirigiu-se à porta na esperança de ouvir um barulho de vizinhos. Colou o ouvido à porta. Nada. “É calmo o sítio” pensou. Decidiu ir à rua comer qualquer coisa e conhecer melhor a zona. Abriu a porta. Um barulho imediato ocorreu na casa de banho. Um barulho de descarga de água. Correu para a mesma e sim, era a descarga do autoclismo. “Bonito” disse. Saiu. Carregou no interruptor da escada. Não havia luz. Acendeu o isqueiro. Chegou à rua. Um bêbedo fumava um cigarro e falava sozinho. Uma mulher falava sozinha. Tudo normal. Olhou para o fundo da rua e reparou numa luz ténue de uma porta. Caminhou. Era uma pequena tasca. Entrou. Sentou-se. Pediu uma sopa de feijão, meia dose de frango frito com batatas fritas muito bem fritas, um jarro de vinho tinto da casa e pão com azeitonas. Foi à casa de banho lavar as mãos. A primeira coisa que lhe saltou à vista foi o autoclismo. Era um daqueles pendurados na parede com uma corrente que se puxa. Puxou. Imediatamente uma descarga de água encheu a casa de banho de som. Suspirou de alívio. Voltou para a mesa e pegou num bloco onde escrevinhou umas ideias enquanto comia a sopa. Finda esta, voltou-se para as azeitonas. Depois de dançar com o garfo na tentativa de agarrar uma, optou pelas mãos. Depois foi a vez do frango e do pão. Durante o festim ia regando o copo com o vinho.

            Satisfeito voltou a casa. Quando abriu a porta ficou uns momentos a ouvir o silêncio. Era uma novidade ainda, aquela ampla assoalhada. Dirigiu-se à casa de banho e puxou o autoclismo. Nada. Puxou três vezes seguidas. Nada. Puxou outra vez. Nada. “Foda-se” exclamou. Pôs música e sentou-se para calmamente fumar um cigarro. Levou os dedos ao bolso, automaticamente, para executar o ritual de todas as noites. “Caralho” exclamou, ao verificar que não tinha cigarros. “Tenho de voltar á tasca” pensou. Dirigiu-se para a porta. Abriu-a. Um barulho imediato ocorreu na casa de banho. Um barulho de descarga de água. Correu para a mesma e sim, era a descarga do autoclismo. “Bonito” disse. Saiu. Carregou no interruptor da escada. Não havia luz. “Caralho para esta merda” disse. Acendeu o isqueiro. Chegou á rua. Um bêbedo fumava um cigarro e falava sozinho. Uma mulher falava sozinha. Tudo normal. Dirigiu-se á tasca, comprou cigarros e voltou para casa. Sentou-se na cadeira e gozou o cigarro. “Há de ser normal uma pessoa ter contrariedades nos primeiros dias de casa nova” pensou.

Deixou-se levar por estes pensamentos enquanto olhava para o fumo que se contornava e deformava até se esvair, tal como as pessoas. Decidiu experimentar mais uma vez o autoclismo. Puxou. Nada. Puxou outra vez. Nada. Deixou-se cair na tampa da retrete.

De repente os olhos de Pedro Couto brilharam e um sorriso alucinado vislumbrou-se-lhe nos lábios arroxeados do vinho tinto da casa da tasca. Correu para a porta. Abriu-a. Um barulho imediato ocorreu na casa de banho. Um barulho de descarga de água. Correu para a mesma e sim, era a descarga do autoclismo. Correu para o telefone. Marcou um número com uma gargalhada descontrolada. “Mãe” gritou com uma gargalhada descontrolada “Mãe, o autoclismo só funciona se eu abrir a porta... se eu sair...” e continuou numa gargalhada descontrolada. Rodopiou com a gargalhada extasiante. A janela da varanda estava aberta. Pedro Couto embateu contra a janela e pensou: “Do mal o menos, podia ter caído”. E continuou a rir, a rir, a rir. Até que se sentiu zonzo. Deixou de sentir as pernas. Caiu redondo no chão. Sentiu um líquido a cair pela nuca. Levou os dedos à nuca e sentiu um orifício no qual cabia o seu dedo todo. Afinal a janela não o tinha salvado. Não se ouvia ninguém no prédio. Pedro nem se conseguia arrastar para abrir a porta e poder ouvir, pela última vez, o som do autoclismo.

Bruno Schiappa - 1995


O homem sem boca, a realidade, o real e a coisa

Quando escrevi o texto sobre o homem sem boca, sabia exatamente que estava a escrever metáfora e parábola. Mas hoje sinto que estava a escrever a minha perceção de algumas realidades. O real, é uma leitura e a realidade é o que é característico dessa leitura. O referencial de cada um permite a coexistência de várias realidades enquanto, o real, é apenas o factual mas obedece à lei da perspetiva. Dito de outro modo, existe a coisa, não nominável de outro modo porque ainda não está inserida numa referência. A partir do momento em que o esteja, passa a ser parte do referencial da psicopatologia da vida quotidiana.

E, lá está, o homem sem boca é uma realidade de um real de uma coisa!

O ator Paquistanês



Estávamos nós a ensaiar hoje, ao ar livre, no Campo dos Mártires da Pátria, e já habituados aos acidentes de interrupção por parte de alguns transeuntes, quando um homem pequenino, de cabelo farto e com uma cara muito carinhosa, se aproximou e ficou a ouvir a Anabela Pires. Ele carregava uma cerveja estrangeira e percebia-se que já vinha tocado. Eis se não quando, interrompeu a Anabela e disse, em castelhano, que as palavras dela eram lindas. A atriz agradeceu, apontou para mim e disse que eu tinha escrito. Ele perguntou muito contente Eres tu el escritor? Si, soy yo quién lo ha escrito. Respondi.

Escrebeme algo, unas palavras, para qué you diga. Soy actor. Tinha o tamanho do Fernando Arrabal, eu estava a olhar para ele, encantado. Perguntou se se podia sentar e conforme ia ouvindo a atriz ia reagindo e dizendo Qué bonitas son las tuyas palabras.

No fim ficou a conversar um pouco connosco e contou que era ator  no Paquistão mas que cá não conhecia amigos e não conhece ninguém. Que fala muito com os burros mas que gostava de ter amigos como nós. Sensíveis. Que queria trabalhar e não queria dinheiro. Para eu lhe escrever umas palavras. Pediu à atriz para ela lhe dizer umas palavras para ele repetir. Ele repetiu uma frase do poema que ela vai repetindo como mote, na curta.

Os olhos dele brilhavam, e não era do álcool, era de alegria e inspiração. Depois falou num guru que tinha no Paquistão, que não tinha nenhum Deus, o guru. Era ateu. Contou que o sapo estava no meio do lago e que ele tinha medo e que o guru lhe tinha dito que Deus está na natureza. E o modo como ele imitou o sapo fui maravilhoso. Por fim ele disse que por vezes estava cansado da sua vida. Que já teria 42 anos quando agosto chegasse.

Pediu o meu contacto e eu dei-lho mas também lhe dei o de uma agência de figurantes para ele começar. Tinha deixado o telemóvel no trabalho. Ele. A atriz assentou num papel. Eu disse-lhe: tu és uma pessoa especial, por favor cuida de ti. 

Parecia eu que estava a falar para mim quando ele respondeu: tu eres más. Fiquei arrepiado. Dei-lhe um abraço e respondi que isso não existe. Cada um é especial à sua maneira.

Si te llamo me escribis unas palabras?

Não resisti e disse: Está prometido.

Fiquei o resto do ensaio a pensar nele enquanto trabalhava A Carta da Corcunda para o Serralheiro e a Mémórias de um psicopata.

Depois um casal masculino subia umas escadas com um cão solto, um cão ao colo e a tentarem que um terceiro andasse. O que estava ao colo e o que não queria andar tinham saído à rua pela primeira vez. Tinham sido resgatados e estavam com medo de serem abandonados de novo.

Digamos que foi um dia para a ternura e a sensibilidade.

Agora tenho de olhar também à minha volta e ver se não perco!


                                                            


O homem sem boca!

 Era uma vez um homem sem boca. Em vez de boca, só havia pele. Ele tinha olhos, mas estavam voltados para dentro. Portanto, ele não podia ver. Só existia o silêncio interior. Ele ouviria se tivesse ouvidos e, como não havia narinas no nariz, ele apenas podia respirar pela pele que era tão fina que era transparente. Ele era invisível porque, por baixo da pele, não havia nada. Apenas uma leve brisa soprava.

Algumas pessoas são assim!


BS - 2013 


 

Sobre a Morte, os Amigos e a Família

 Eros e Thanatos estão de mãos dadas. Já "rezavam" os gregos clássicos. E é muito atual esta ideia. Os amigos são a família escolhida. Mas só para alguns. Nem sempre nós somos a família escolhid,a pelos amigos que participam da família que nós escolhemos. Demasiado retórico? Tanto como em vez de ir para longe tipo o Zimbabué, ir ali para Estarreja. Ou mesmo para Pondicherry. Tal como a família, também a família "amigos" nos pode matar se nos tornamos dependentes dessa vibração. E, desenganem-se, nunca deixamos de vibrar pela família-família, sobretudo nas situações de perigo em que possa estar. Pelo menos comigo sempre foi assim. Acalmou um pouco. É verdade. Mas foi sempre uma espécie de continuidade com o cordão umbilical perdido por corte que talvez me tenha conduzido a vibrar tanto em defesa das mulheres da família.

Ora, como sempre, tudo muda. Até a surda muda. E tudo passa. Até a uva passa. Vai daí fiquei sempre hooked on friends. E nunca precisei de sentir retorno. Sentia, e era tudo.

Mas estes impulsos e pulsões de Eros (vida) são recorrentemente intercalados com pulsões e impulsos de Thanatos (morte). Muitas vezes em amigos, muitas vezes em família, muitas vezes em nós e nas ideias.

Então, celebrar a vida, também pode ser celebrar a morte uma vez que, a primeira, é só o tempo que dura entre a vinda e a ida. 

Daí a importância dos amigos de Alex, de Lawrence Kasdan (1983).

E daí a grande fraude do cinema. O cinema alimenta realidades que são tudo menos realidades. Pelo menos as minhas. Tal como há vários teatros, também há várias realidades. As do cinema só existiram para mim até à idade dos 50 anos. Depois disso passei a perceber que as minhas realidades só existem para mim. Tal como o cinema. Um filme bom é aquele que leva cada um de nós a uma "viagem" pessoal. Ora, isso transforma o cinema numa das mais belas fraudes de realidades. E, gosto tanto dessa fraude, que aderi a ela com todo o gosto. As imagens em movimento têm uma magia que falta ao mundo, tal como a música.

Deus devia ser DJ para além de realizador e/ou encenador.

Se fosse assim, talvez não tivesses partido por vontade própria. Ou será que sim? Hã? Luís Aleluia.

E cá estamos... como os amigos de Alex... com a tua partida prematura.

Bem hajas e até breve,


Sobre Eunucos, Castrati e invasões ultrajantes

 Os eunucos remontam a três mil anos antes da nossa época, mais coisa menos coisa. Era uma medida para os guardas dos haréns não fornicarem com as esposas e odaliscas dos senhores. Arrancavam-se-lhes os testículos e os pénis. Por vezes, apenas os testículos. Já os castrati remontam aos primórdios do cristianismo. Era uma forma de os pais impedirem os filhos de procriar, poupando dinheiro desse modo. Muitas vezes esses filhos eram entregue a padres e a professores de canto para que tomassem conta deles. Uma vida na igreja era almejada por aqueles que tinham poucas posses. Foi desse modo que ficaram ligados ao canto operático. Entretanto prevenia doenças, dizem, e reduzia as hormonas. Ora, com esta beleza e estética de visão do mundo, criou-se o bom associado ao belo modo de castrar os outros animais. Evita doenças, defendem. E também evita o abandono, sublinham. Vai daí, em Portugal, não se tem opção porque não se esteriliza. Castra-se e mais nada. Pergunto-me se não seria bom, tomando como exemplo  o que fizeram ao meu cão, castrar todos os homens. Evitavam-se as doenças da próstata e o abandono por velhice. Ou não? Pensando bem...










Revisitar

Revisitar conferências das quais fui curador e moderador, é um exercício maravilhoso porque acorda conteúdos cuja importância não era tão clarana altura. Também encontrei uma colega de curso - ESTC Bairro Alto 1986/1989 - Maria João Reis, e recordar é revitalizar. 

Gosto de saber que as situações marcaram.

Olhar para trás não é ficar preso no passado. Pelo menos não tem de o ser. Pode ser para nos alertar para um melhor presente. E o presente é uma dádiva porque está aqui e agora, certo?

Há tempos encontrei alguém de outra época mas não me lembro de quem encontrei nem o que significou para mim. Lembro-me que significou muito mas não sei o quê. Ora, a Adília Lopes vive dos seus escritos e lembra-se das situações mas eu não. O que nos diferencia?

Talvez a demência não seja uma incapacidade mas a capacidade de nos retirarmos com laivos de incapacidade para não ficarem zangados connosco.

É algo a pensar de modo demente, paciente e contente!




O Gorro Amarelo

 O Gorro Amarelo

Era uma vez um gorro amarelo que voou desde o Canadá até Portugal para aquecer a cabeça de um cantor careca, no frio. Os meses traziam frio a mais e o gorro decidiu que, era a sua boa ação de toda a vida, aquecer a cabeça de um cantor careca contra milhas trocáveis por belos voos no paradisíaco Éden. A sua parceira, chamada Amazon, tratou de tudo, e ele lá assentou na cabeça do cantor careca. Um dia, o cantor ia a andar muito bem nas ruas da grande capital cheia de luz, de seu nome Lisboa e de origem Olissipo, por parte da mãe, e Olissipo (igual) por parte do pai, e, heis senão quando, o gorro é levado, de modo incontornavelmente associável a um rapto, pelo vento louco que se fazia sentir. Certo dia, o cantor foi ver um espetáculo de um ator que, no seu 50º aniversário, decidira dar um jantar "cedio" (por oposição a tardio) no qual presenteava os presentes (ehhhehehe, que belo pleonasmo) com um strip tease cómico. Ao som de um tema de jazz de New Orleans, chamado Vai e não voltes, o ator começou a dançar. Só que tinha sido arrojado e tinha posto balões insuflados na zona das mamas, das nádegas e da protuberância habitualmente conhecida como pénis, mas que podemos referir como "mala". Enquanto dançava com os lábios pintados de vermelho e um bigode digno do Tom of Finland, o ator começou por, no compasso 56, espetar um alfinete na mama direita.  Bum, ouviu-se. De seguida outro alfinete (ele não gostava de usar sempre o mesmo material) na mama esquerda. Bum, ouviu-se de novo antes de a mama esvaziar como tinha acontecido com a extrema direita (mama, bem entendido). Mais uns 56 compassos e novo alfinete na nádega direita. Bum seguido de fssshhh, porque a nádega esvaziava. Mais outros 6 compassos (porque tem de haver um certo ritmo) e bum na nádega esquerda seguido de fssshhh. Mais 56 compassos e, quando chegou a vez da bela protuberância cheia de vigor e insuflada que estava na zona "mala", ouviu-se um bum mas o que se seguiu foi muito diferente. A braguilha abriu e dela, com sons pop up pop, saiu um esplendoroso gorro amarelo, que era o que aumentava a bendita "mala" por baixo do balão. O cantor careca saltou para o pequeno palco, ajoelhou-se e arrancou o gorro amarelo da braguilha do ator, sentindo-se renascer uma vez que estava de novo em continuidade com o seu quente gorro amarelo. E o gorro amarelo sorriu, sem ninguém perceber, porque tinha tido muitas saudades daquela careca redonda!

Bruno Schiappa, maio de 2023



 

O não-princípio e o não-fim

 Hoje decidi começar a ver a vida por outro prisma. O não-princípio e o não-fim. 

Conforme ia dirigindo uma meditação, tornou-se claro que a pulsão e o impulso são de facto o eros (aqui no sentido de vida, conforme os gregos consideravam). Eros por oposição a Thanatos (personificação da morte). Prefiro conduzir-me pelas referências de Morpheus (sonho) e Hipnos (sono). 

O que procuro é a viagem como recompensa da própria viagem.

O dia tem tantos batimentos que não sinto porque estou a antecipar outros que, como estou ansioso, acabo por também não sentir.

Termino interrompendo esta ligação pensativa porque vou tomar duche e fazer a barba! Faz Parte!




O início

Finalmente decidi começar este blog. Trata-se de uma aventura da qual espero sair com algumas lições. Não sei quem sou. Sei o que faço, sei fazer e gosto de fazer. Mas isso não me define como pessoa. Define-me como ser ou algo útil. Nunca isolado. Não-ser, ser-útil. Não-algo. Algo-útil.

Hoje, por exemplo, um cansaço enorme abateu-se sobre mim, apesar de estar decidido a agarrar a minha vida. Mas há uma espécie de força invisível que parece-me puxar-me para a inércia. Para a contemplação.

Sinto cada vez menos e procuro sentir cada vez mais. Quando sinto não é por espontaneidade, como costumava ser. É uma espécie de negociação com o momento. Peço para sentir o céu, as nuvens, a luz e os pássaros. E à força de querer sentir, ou de pedir para sentir, lá sinto. 

Um terrível sentimento de culpa tem-me assaltado nos último dias. O meu cão, o Liubóv, animal maravilhoso e cheio de vida, apesar de ter sido abandonado pelos anteriores hospedeiros e depois resgatado por mim, ser cheio de força e alegria que me veio retirar de um momento negro e obscuro, foi submetido a uma castração. Eu nunca quis conduzi-lo a esse processo porque nunca quis fazer aos outros o que não gostava que me fizessem a mim. Mas a fortuna levou-me a ter de aderir a um programa de proteção e apoio social, caso me acontecesse qualquer coisa. O programa, com participação da Câmara Municipal de Lisboa, impunha essa condição. E lá anui, com o sangue gelado. Depois de o inchaço passar, a realidade da ausência de testículos e de ereção instalou-se e o olhar de desespero e medo de que eu já não gostasse dele, começou a ser muito presente. O sentimento de culpa que se abateu sobre mim tem como escudo uma sombra negra e uma nuvem compacta. Ampliado pela perseguição que faz às ervas, na ânsia de encontrar uma cura para o que lhe aconteceu, o Liubóv entrega-se à devoração das mesmas e olha para mim.

Talvez eu não tenha outro modo de viver que não o tortuoso e de ambiente de trevas, intercalado com pequenos e curtos momentos de ilusão de uma vida plena, feliz e naturalmente saudável. 

Há em mim qualquer coisa de genético (aqui no sentido de qualidade ou característica de Genet) que me absorve numa ânsia de me perder como o meu colega de escuridão Mário de Sá-Carneiro.



Um homem cresce. É ator. O que sempre quis. Também canta e dança e toca violino. Escreve e compõe. Integra a área das ciências sociais e humanas. Tem investigações financiadas pelo governo. Desenha mestrados e sites. Investigou no mundo todo, desde Israel à Alemanha passando por França, Itália, Vaticano e Áustria. Recorrentemente, apesar de 34 anos de carreira artística e 15 de investigação científica, vê-se com 5 livros publicados e mais de 50 textos para teatro escritos e encenados, além de 3 produtos audiovisuais, mas sem rendimento. Completamente à deriva. O mérito não vale nada nos tempos em que vive. Tudo é desmotivante e apenas as fantasias sexuais o movem. Mas essas, como já foi referido no seu último livro, são apenas e somente fantasias. Não nutrem a vida. Nutrem a solidão.




O que muda, o que se transforma e o que se cumpre!

 A maior mudança que acontece e é incontornável é a nossa morte. E dessa, temos a sensação de ter medo. Mas do que temos mais medo é da vida...